Resumo: As discussões sobre a redução da maioridade penal para os adolescentes autores de atos infracionais no Brasil suscitou uma série de questionamentos que nos levaram a uma reflexão. De que maneira a medida socioeducativa de prestação de serviços à comunidade – PSC contribui para a reinserção dos adolescentes na sociedade e mostrar como a questão da redução da maioridade penal é levantada por diversos setores da sociedade de maneira superficial, imediatista, sem levar em conta os fatores sócio-históricos e político-econômicos que contribui para a prática de atos infracionais.
Palavras-chave: Prestação de serviços à comunidade - PSC, reinserção social, ressocialização, criança e adolescente, medidas socioeducativas.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este artigo é o resultado do Trabalho Interdisciplinar Dirigido – TIDIR e sintetiza nossas impressões, após pesquisas realizadas, baseadas exclusivamente em vasta bibliografia que trata dos assuntos pertinentes ao eixo principal e de artigos e trabalhos que tinham este mesmo tema como referencial. Tem como eixo principal: Política Social e Direitos Humanos e como sub-eixo: Políticas Sociais como efetivação de direitos. Em seguida, foi definido o tema: O adolescente em conflito com a lei e o sub-tema ou tema-problema: Redução da maioridade penal ou a efetivação das medidas socioeducativas? Além disso, o tema foi analisado do ponto de vista da sociologia, da psicologia e da filosofia, bem como tentamos também estabelecer uma relação com o contexto sócio-histórico e político-econômico e com as políticas sociais existentes no Brasil. A partir daí, o grupo definiu seu ponto de vista sobre a questão apresentada e elegeu a seguinte reflexão: A Prestação de Serviços à Comunidade – PSC como instrumento de reinserção social. A PSC é umas das medidas socioeducativas que estão previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA para os adolescentes que praticarem ato infracional, por entender que esta é uma medida que, efetivamente, oferece oportunidade para que este adolescente estabeleça uma relação com o mundo externo, fazendo com que tome ciência das diversas formas de relações que são estabelecidas com a sociedade, além de tomar conhecimento das formas que o Estado brasileiro e demais organismos estão estruturados, fazendo com que este, o adolescente, possa refletir sobre suas ações e de que forma estas ações interferem diretamente no seu convívio sócio-familiar e como a sociedade os vêem. Opondo-nos à idéia de redução da maioridade penal, outra discussão que vem ganhando espaço, principalmente quando alguns casos isolados de violência cometidos por adolescentes têm repercussão nacional, divulgados pela mídia de forma irresponsável e sem qualquer fundamento estatístico para os dados que são apresentados, causando uma sensação de hiperdimensionamento do problema, impunidade e insegurança à sociedade. A discussão da redução da maioridade penal faz parte de um discurso político generalizado que tem apoio de diversos grupos da sociedade brasileira que privilegia a retenção do adolescente, que sofre diariamente com a violação de seus direitos fundamentais definidos em seu Estatuto, em detrimento da efetiva aplicação das medidas socioeducativas que, teoricamente, estão garantidas no ECA e que, se aplicadas de fato, diminuiriam os casos de atos infracionais cometidos pelos adolescentes e em contrapartida dariam oportunidade para estes jovens se desenvolverem político e socialmente.
Neste nosso trabalho, utilizamos os termos reinserção social e ressocialização que, em busca de um conceito sobre estes dois termos, percebemos que apesar de algumas diferenças específicas, ambos convergem para restabelecimento das sociabilidades, através da (re) inserção de indivíduos ou grupos sociais na escola, na ocupação dos tempos livres, na família, no trabalho ou na saúde. Têm finalidade de colaborar para a coesão e ordem sociais, indispensáveis ao desenvolvimento e à paz, bem como promover a convivencialidade, a responsabilidade, a justiça, o bem estar e a esperança individual e interpessoal. Assim, sempre que esta palavra for mencionada no texto, entenda-se este conceito como a descrição citada acima.
O desrespeito às normativas nacionais: Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA – Lei Federal nº. 8.069/90 e internacionais: Declaração Universal dos Direitos Humanos, Convenção da Organização das Nações Unidas – ONU sobre os Direitos da Criança, das quais o Brasil é signatário e às garantias fundamentais do cidadão brasileiro, estabelecidas nestas normativas, frisadas de maneira especial às crianças e adolescentes em seu estatuto próprio, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, criado em 1990 e que prevê medidas de proteção, prevenção e principalmente orientação, contribui para a violência e para os atos infracionais cometidos pelos adolescentes, de maneira que há uma miopia na interpretação deste Estatuto, assim como uma deturpação das medidas socioeducativas nele fundamentadas.
Em face do constante aumento de casos de violência protagonizada por crianças e adolescentes e veiculados pela mídia impressa e televisiva e a ênfase que é dada a estes casos, sem uma avaliação imparcial e baseada em estatísticas e fontes seguras, levando as autoridades e a sociedade em geral a levantar e discutir a questão da redução da maioridade penal com certa superficialidade, sendo esta pensada em caráter imediatista, ignorando completamente o ECA e demais normativas nacionais e internacionais com suas prerrogativas no que diz respeito às formas de tratamento, atendimento e de punição estabelecida para os adolescentes autores de atos infracionais, nos faz refletir de maneira mais ampla a questão do adolescente infrator, a realidade social à qual está inserido e as medidas socioeducativas definidas pelo ECA: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semi-liberdade, internação em estabelecimento educacional.
Considerando que a medida socioeducativa de prestação de serviços à comunidade – PSC é uma alternativa para que, ao mesmo tempo em que é adotada como punição aos adolescentes autores de atos infracionais, este artigo tenta mostrar, que esta medida extrapola a sua finalidade apenas punitiva e pretende-se mostrar que se torna uma oportunidade para que estes mesmos jovens entrem em contato com outras formas de relações sociais, estruturas da sociedade e de organizações sociais e empresariais de uma forma diferenciada das anteriores às suas infrações. Desenvolvendo e estabelecendo noções de relacionamento interpessoal, disciplina, respeito, cordialidade, entre outros, contribuindo assim, para o processo de reinserção social do adolescente na sociedade e preparando-o para os novos desafios da sua vida familiar, comunitária, educacional e profissional.
DESENVOLVIMENTO
1 – A “LEGALIDADE” DA JUSTIÇA
Estabelecer a relação entre o que é legal e o que é justo é uma tarefa dificílima, inclusive para alguns estudiosos, teólogos e filósofos como Rubem Alves que afirma: “não sei o que é justiça”, mas acrescentou “sei o que é sentimento de injustiça – uma coisa dentro da alma que diz que as coisas não deveriam ser da forma que são” (Alves, 2001). É a partir deste conceito que tentaremos estabelecer esta relação.
Uma das primeiras coisas que devemos ter em mente é que existe uma distância muito grande entre o que é legal e o que é justo. Por isso é que as leis estão sempre em transformação, como aponta Rubem Alves: “Se as leis fossem justas, não precisariam ser mudadas. São mudadas porque são injustas”. (Alves, 2001).
A lei é uma forma de pensamento lógico que parte de duas premissas: universal e particular. A universal é de que sem as leis universais, iguais para todos, seria impossível a ordem social, pois cada um faria o que quisesse, estas leis servem para disciplinar e organizar a convivência na sociedade. Viver em sociedade é abdicar de vontades individuais em prol de uma vontade geral que está expressa na lei. Abro mão da minha vontade individual e transfiro para a lei, seria a “alienação” da vontade individual que, segundo Hobbes (Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVI), sem esta transferência de vontade individual para a lei, esta lei entendida como Estado, seria uma “guerra de todos contra todos”. A particular é de que alguém que transgride a lei, faz de forma a não ser conhecida para não serem punidos, pressupondo a construção do fato para que o mesmo receba a punição adequada pela transgressão. Surge o primeiro problema: o fato é construído a partir de duas interpretações, da acusação e da defesa. Esta construção é exposta a um corpo de jurados que ignoram tudo que realmente aconteceu. Providos de subjetividades como qualquer outro ser humano, preconceitos, medo, nervosismo, falta de clareza, além da esperteza, sagacidade, honestidade e desonestidade dos advogados, distanciando, cada vez mais, o ocorrido da realidade. O juiz tem o poder de decidir e “tem que saber que a verdade está em jogo e que sua sentença, mesmo sendo legal, pode ser injusta e aí está o grande dilema: qual será a sentença legal que mais se aproxima da justiça? (Alves, 2001)
A idéia de Justiça está diretamente relacionada com o exercício de direitos e interesses legalmente protegidos, porém direitos legalmente protegidos, nem sempre são direitos efetivamente garantidos ou exercidos. São diversas as legislações que tratam dos direitos da criança e do adolescente, mas isso não significa, necessariamente, justiça (Guerra, 2005). Leis que vão, desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Declaração Universal dos Direitos da Criança, ambos definidos e proclamados pela Organização das Nações Unidas – ONU até a consolidação da Constituição de 1988, também conhecida como a Constituição Cidadã, e a homologação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, criado em 1990 através da Lei Federal nº. 8.069, considerado um avanço na legislação de proteção à infância e à juventude.
Tudo isso desencadeou uma série de ações visando uma alteração nas formas de punição às crianças e adolescentes autores de atos infracionais, mas isso não resolveu o problema das injustiças cometidas pelo Estado através de suas leis, pois estas leis são definidas não pela população que realmente conhece as necessidades, mas por um grupo de pessoas, alheios à realidade social, como bem definiu Rosângela Francischini e Herculano Ricardo Campos, ambos docentes do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN:
“... tais regras são definidas por e a partir de um grupo social específico, aqui denominado de dominante, o qual constrói toda uma teia de relações sociais e uma subjetividade (ideológica) que, ao mesmo tempo em que é expressão desta teia, é também sua fonte de retroalimentação. Logo há um padrão de referência de relação social que serve para delimitar as fronteiras do que se considera transgressão. Conseqüentemente, segue-se um padrão de referência quando se pensa em ressocialização, o daquele grupo social específico.” (2005, p. 269)
Vemos-nos, freqüentemente, diante da violação dos direitos fundamentais dos cidadãos, especialmente das crianças e adolescentes, que deveriam ter prioridade no atendimento das suas necessidades, como determina o ECA. A preocupação do Estado está em encontrar meios de retenção destes adolescentes em conflito com e lei, em detrimento da busca, em conjunto com as famílias e a sociedade, de respostas e soluções para a efetiva garantia dos direitos da criança e do adolescente: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, deixando-os a salvo de qualquer negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, conforme determina o artigo 227 da Constituição Federal de 1988.
A relação estabelecida entre o que é justo é o que é legal é o distanciamento que existe entre um e outro. Que a justiça e a legalidade dependem do ponto de vista de quem formula as leis que, na maioria das vezes, é da classe dominante, para atender às suas necessidades e demandas, não está preocupada em prevenir ou educar, mas apenas em aplicar medidas de punição, retenção e repressão, para que seus projetos de vida não sejam prejudicados pela “desordem social”, portanto não pode ser justo para quem está na base da pirâmide social, especialmente os pobres e negros.
2 – A POSIÇÃO DO ESTADO NO ENFRENTAMENTO DAS QUESTÕES DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Diariamente, crianças e adolescentes brasileiros sofrem atos de violência de seus direitos, seja pela família, pela sociedade e principalmente pela omissão do Estado. Esses são privados de possibilidades como respeito em sua cidadania, acesso a justiça, educação e saúde, tornando-se vulneráveis à violência urbana, à criminalidade, à drogadição, à situação de rua, entre outros.
Através de uma análise ao longo da história é possível notar que o Estado possui uma preocupação peculiar no que se refere ao adolescente autor de ato infracional, suas decisões estão sempre voltadas a manter a organização da sociedade, a partir de uma visão de ordem social e não em uma política de transformação das condições de vida destes adolescentes, favorecendo a prática do ato infracional.
Em 1964, momento marcado pelo Golpe Militar em que militares passam a governar o País, a idéia de mudar o tratamento à infância e adolescência é interrompida e substituída pela ideologia militarista, que tinha como objetivo o controle social da população principalmente da mais pobre e miserável. Foram criadas algumas instituições de internação que se revelaram na sua atuação caracterizada por uma política assistencialista, tratamento desumano e ausência de proposta pedagógica. Os militares tinham como objetivo o desenvolvimento nacional através de estudos de teorias sobre marginalização e políticas de caráter militarista. Sua proposta era de conseguir o desenvolvimento do Brasil através da “Modernização Conservadora”, no qual a questão social era vista através da ótica de que a pobreza era geradora de conflitos. Com isso, os chamados “menores” em situação irregular eram vistos como um problema social que poderia colocar em risco a manutenção da ordem e o desenvolvimento nacional pretendido pelos militaristas.
Muitos desses jovens continuavam e continuam cometendo atos infracionais ao sair deste tipo de instituição, o que gera outro problema: “a reincidência”.
Através da redemocratização da Sociedade, que buscavam sua civilidade através de movimentos sociais, o Estado deixou de ser o único protagonista das ações da área social. Surge nos setores da sociedade civil uma força de oposição às políticas até então vigentes, onde também educadores e trabalhadores sociais da área, passaram a reconhecer os adolescentes como sujeitos de direitos, e nesse sentido, a importância de se garantir condições de proteção e desenvolvimento.
A realidade de muitas crianças e adolescentes se assemelha às de outras décadas, pois apesar de passarem a ser reconhecidos como sujeito de direitos, ainda se luta pela plena efetivação do seu Estatuto.
Grande parte da população brasileira vive em situação de miséria, fator agravante a cada dia, e com isso cresce a exclusão das crianças e adolescentes de seus direitos básicos. Para esses adolescentes privados de seus direitos e possibilidades a estigmatização social acontece automaticamente, “sendo reconhecidos como pivetes, trombadinhas e outros” (Rosa, p. 183), a criminalização da pobreza leva a sociedade a enxergar o adolescente pobre, e principalmente o negro, como perigoso e ameaçador o qual deve ser controlado, educado e interditado. Preconceito que gera discriminação.
Dentro desse contexto de exclusão, resta a esses adolescentes a inserção social no imediato, seja trabalhando, roubando, pedindo, brincando, etc. É assim que muitas crianças e adolescentes impossibilitados de viver sua infância tornam-se precocemente trabalhadoras, vítimas, mas também réus.
Esse quadro torna-se mais intenso para o adolescente com prática de ato infracional, pois a situação de pobreza pode favorecer e levar a uma relação com a prática de delitos, causando temor à sociedade e tornando-se alvo da ação arbitrária da polícia, que no Brasil mostra-se violenta e generalista.
Este cenário é o reflexo de um sistema capitalista estrutural excludente que socialmente produz e potencializa a violência. E mostra a trágica organização econômica, política e social do Brasil, historicamente caracterizada pela distribuição desigual de renda que, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE 1% da população rica detém 13,5% da renda nacional, contra os 50% mais pobres, que detêm 14,4% desta, a ausência de justiça e desrespeito à cidadania.
A população brasileira enfrenta hoje, o problema do desemprego, fruto do mercado globalizado que num processo de transformação gerou enfraquecimento do Estado e mudanças no mundo do trabalho, e também do Neoliberalismo que permite a livre concorrência de mercado e um salário mínimo que não supre as necessidades básicas, defendendo o Estado mínimo.
As famílias pobres não têm lugar reservado na produção e passam a depender do emprego esporádico, ou das esmolas, ou ainda de pequenos furtos de seus filhos para sobreviver. São filhos para os quais a sociedade não reservou lugar e acabam vivendo espalhados pelas cidades, nas ruas, aonde aos poucos vão caminhando para a prática de atos infracionais, numa linha de sobrevivência.
As medidas socioeducativas surgem para amparar o adolescente autor de ato infracional, pois formam condição especial de acesso a todos os direitos sociais, políticos e civis, considerando o adolescente como pessoa em condição peculiar de desenvolvimento. Fazendo com que a Prestação de Serviço a Comunidade - PSC seja um instrumento de transformação na reinserção do adolescente na sociedade.
3 – O CAPITALISMO E O ADOLESCENTE EM CONFLITO COM A LEI
O sistema sócio-econômico pode ser visto como um fator determinante para que adolescentes cometam atos infracionais, no entanto não é o único, já que adolescentes de classe média e alta também cometem infrações. O capitalismo, que é o sistema sócio-político e econômico que vigora no Brasil, tem contribuído para o aumento das desigualdades sociais e ampliado as diferenças entre as classes. A busca pelo lucro tem feito com que os donos dos meios de produção explorem seus trabalhadores, aumentando a produção de mercadoria e, com isso, acumulando mais capital. Esse capital, entretanto, tem ficado nas mãos de poucos, enquanto tantos outros vivem na miséria.
Diante deste quadro, encontram-se os adolescentes que não possuem renda, privados de muitos direitos fundamentais e, principalmente, que estão distantes do estilo de vida ditado pelo capitalismo, onde a qualidade de vida é buscada no poder de compra. Esses jovens não conseguem ver nada além do ter, do possuir. O que os impulsiona, em certas situações, a cometer atos infracionais para adquirir um celular moderno, o tênis mais caro, a roupa de marca e tudo aquilo que eles vêm na televisão, nas vitrines das lojas ou nas ruas por onde passam.
Hoje, a sociedade deixou de reivindicar uma maior participação democrática ou ainda, que sua cidadania seja respeitada. O que está como prioridade é poder consumir, não se dá tanta importância para o que acontece na saúde, educação, habitação do nosso país. O Estado neoliberal não interfere na economia, para favorecer os interesses das classes mais abastadas e poderosas. E para reduzir gastos, diminui os investimentos na área social, gerando maior desemprego, serviços precários e ineficientes. A pobreza não é só material e financeira, é intelectual também. Muitos não têm noção da importância que tem dentro da sociedade, não entendem como o voto pode transformar a realidade em que vivem e se deixam levar por falsas promessas.
A desigualdade estimula o adolescente a adquirir bens materiais, não importa como, para assim se aproximar daqueles que possuem renda elevada. Eles não entendem porque uns podem ter tudo o que desejam e outros não podem ter nada, criando uma revolta interior, anestesiada quando se alcança o bem material. O caminho que será trilhado para conquistar este bem pode ser o roubo, a agressão ou até mesmo, matar se for preciso. Enquanto isso, o Estado está preocupado em cumprir as metas estabelecidas pelos organismos internacionais como o Fundo Monetário Internacional – FMI entre outros, reduzindo suas responsabilidades e transferindo-as para a própria sociedade e o terceiro setor. Alguns políticos, que são escolhidos para nos representar, criar as leis que organizam a nossa sociedade, estão preocupados mesmo em elaborar projetos, e legislações que favoreçam a si mesmos e não a sociedade.
Nesse contexto, o adolescente se desenvolve com uma visão equivocada de cidadão, reproduzindo nas suas vidas a idéia do ter sobre o ser. Muitos destes adolescentes não planejam estudar ou trabalhar para que sua trajetória de privação seja mudada. Desejam mesmo é adquirir tudo o que anseiam e ostentar, acreditam em uma realidade que não é a deles, como se essas mercadorias resolvessem todos os problemas. Portanto, o sistema sócio-econômico pode ser considerado como um fator que leva um adolescente a cometer um ato infracional, por que conduz as ações dos mesmos. Para adequar-se ao sistema vigente e a ideologia do ter ultrapassam até mesmo os limites impostos pelas leis.
4 – DA REPRESSÃO À PROTEÇÃO INTEGRAL
Ao longo do processo histórico brasileiro, as poucas políticas voltadas para o adolescente tinham o caráter repressor e a pobreza estava associada à criminalidade. Apenas em 1942, foi criado o Serviço de Assistência ao Menor, com atendimento baseado em internação, o que revela o caráter repressor e correcional desse serviço.
Após o golpe militar de 1964, a política social era a forma de atender às necessidades básicas dos grupos mais vulneráveis da população. Foi criada a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM, instituição do governo federal na esfera da Previdência Social, para traçar a Política Nacional na área da infância e juventude.
A FUNABEM era o órgão federal e a Fundação do Bem-Estar do Menor – FEBEM, atual Fundação CASA – Centro de Atendimento Sócio-Educativo ao Adolescente, os órgãos executores nos estados, mudando o caráter correcional-repressivo para assistencialista, onde os adolescentes passaram a ser vistos como “carentes”, sendo necessário que o atendimento pudesse suprir tudo o que lhes havia sido negado no âmbito das relações sociais. No Código de Menores de 1979, os adolescentes carentes e os que cometiam atos infracionais, eram vistos como resultado de privações e desajustes familiares, necessitando de medida de proteção, que na maioria das vezes, se resumia em internação.
E assim, somente com a implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, as crianças e adolescentes passaram a ser vistos como sujeito de direitos, considerados como pessoas em desenvolvimento e com prioridade na formulação de políticas públicas. Com isso, houve a revogação do Código de Menores, sendo estabelecida a Doutrina de Proteção Integral, denominada Sistema de Garantia de Direitos – SGD, uma rede de políticas articuladas para garantir o desenvolvimento pleno da criança e do adolescente. A SGD é composta de vários subsistemas, dentre eles destacamos o Sistema Nacional de Atendimento Sócio-Educativo – SINASE, que influencia e sofre influência dos demais subsistemas, tais como Saúde, Educação, Assistência Social, Justiça e Segurança Pública, portanto o SINASE é uma política pública direcionada à inclusão do adolescente em conflito com a lei às iniciativas dos diferentes campos das políticas públicas e sociais.
Assegurando os direitos dos adolescentes em conflito com a lei, que até então eram punidos e retirados da sociedade, sem que houvesse qualquer preocupação com seu desenvolvimento e sua reinserção. Para isso, o ECA estabeleceu as medidas socioeducativas, como instrumento para recuperação e ressocialização desse adolescente. É fundamental que haja a integração dessas medidas, nesse caso em especial, PSC com as demais políticas públicas, para que o adolescente infrator não seja privado de seus direitos e que suas necessidades básicas possam ser supridas adequadamente.
As políticas da área da Educação, Saúde e Assistência Social com acesso aos programas de transferência e geração de renda, capacitação profissional, entre outros, contribui para que as necessidades imediatas sejam supridas e permitindo, não só ao adolescente, mas para a família, a possibilidade de reinserção na sociedade e oportunidades para conquistar melhores condições de vida.
Atualmente, as políticas públicas não são específicas e destinadas somente ao adolescente infrator e sim, para os adolescentes como um todo, sem que haja qualquer distinção. No entanto, o não acesso às políticas sociais básicas contribui para o agravamento da condição de exclusão do adolescente brasileiro, pois lhes é negada a possibilidade de desenvolvimento pleno e saudável.
5 – A IMPORTÂNCIA DAS REFERÊNCIAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE
A criança e o adolescente são seres em fase de desenvolvimento físico, psíquico e social, em processo de construção de caráter e personalidade.
Assim sendo, a família tem o papel fundamental de orientar, educar, cuidar e proteger, além de transmitir valores essenciais para a sua formação e socialização. É no seio familiar, que o adolescente deveria ter, garantida, a sua proteção, acolhimento e apoio necessário para o seu completo desenvolvimento físico, mental e espiritual, pois se entende o lar como um núcleo básico de formação, onde o adolescente efetiva seus laços de parentesco com indivíduos consangüíneos, ou não, e faz deste o seu modelo de identificação, entendendo o sentido de pertencer a um grupo social.
Do ponto de vista psicológico, atitudes de crianças e adolescentes podem ser modificadas através de novas informações, com o estabelecimento de novos vínculos, assim como a orientação para novos comportamentos e ações.
Portanto, quando um adolescente comete um ato infracional, são aplicadas medidas socioeducativas, pois, acredita-se na recuperação desse adolescente, através de medidas, que possibilitam a reinserção social, sendo assegurada a assistência de profissionais relacionados à área social, pedagógica e psicológica, fazendo valer seus direitos constitucionais e levando em conta sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
A efetivação da PSC pode contribuir para que o adolescente seja reinserido na sociedade, pois além de uma medida não privativa de sua liberdade, podendo ele manter seus vínculos sociais, fará com que ele interaja com a comunidade, possibilitando o despertar da consciência acerca das coisas alheias (espaço, bens e a própria vida), para a noção, de forma mais concreta, de seus atos, tendo a chance de partilhar valores e sentimentos ao mesmo tempo em que repara seu dano, sendo prestativo e útil, participando do processo de resgate de sua própria cidadania e adquirindo um resignificado para sua vida, contribuindo para a elevação de sua auto-estima, através do comprometimento da família, escola, comunidade, além do Estado.
Segundo Costa, médica pediatra, especialista em adolescência e doutorada pela Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP:
“Do ponto de vista da psicologia, todos possuímos o impulso da agressividade que pode se voltar ao mundo externo ou para o interior do próprio indivíduo.” (Costa e Souza, 2002, p. 441)
Dessa maneira, é a própria sociedade que lhe ensina e entrega todos os instrumentos para a prática da violência, quando não lhe proporciona um ambiente de igualdade, respeito por sua condição singular, suprimento de suas necessidades básicas como escola, alimentação, saúde, habitação, além de necessidades afetivas fundamentais como receber amor e carinho e saber o limite de seus poderes. Nesse contexto ele apenas devolve à sociedade aquilo que dela obteve, como em um círculo vicioso.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos perceber que, baseados nos textos lidos e discutidos, que sempre houve, e ainda há, um descaso histórico da sociedade e do Estado em reconhecer que crianças e adolescentes sempre viveram a margem da sociedade, privadas de condições básicas para o seu desenvolvimento como cidadãos. A negligência e ineficácia das políticas públicas e o crescente envolvimento com o uso e o tráfico de drogas, resultaram em expor os nossos jovens a situações de riscos e ou estar em conflito com a lei. Oriundos em uma grande maioria de grupos familiares vulneráveis, vivendo em comunidades carentes, estes jovens se defrontam com dificuldades das mais diversas ordens, sofrendo inúmeras violações dos seus direitos garantidos na legislação.
A “ultra-generalização”, termo usado pela professora Myrian Veras Baptista, dos problemas que envolvem o adolescente em conflito com a lei manifesta o anseio de diversos setores da sociedade para redução da maioridade penal. Quem defende esta linha de raciocínio centraliza toda responsabilidade na criança e adolescente, desconsiderando fatores preponderantes que alimentam e reproduzem a violência, criminalizando e culpabilizando, a confinar cada vez mais cedo, os nossos adolescentes. Outras variáveis já lhe penalizaram e influem diretamente em seu comportamento violento, dentre as quais: a falta de investimento social, a miserabilidade em que se encontram, a falta de investimento na educação, medidas efetivas de prevenção contra violência no que diz respeito à Segurança Pública, o pouco investimento em esporte e lazer em áreas de risco, as dificuldades vivenciadas no âmbito familiar e comunitário, podem ser identificados como algumas mazelas deste processo estarrecedor de violência contra a criança e o adolescente. Esta pesquisa destacou a importância das medidas socioeducativas com ênfase na prestação de serviços a comunidade - PSC que tem como objetivo restabelecer e fortalecer os vínculos familiares e comunitários por meio de assistência digna e promotora de direitos. Elaborada como intuito de resgatar a cidadania dos adolescentes com a parceria entre Estado, família e sociedade em compreendê-las no que se refere ao resgate da sua autonomia, utilizando todos os recursos operacionais para que suas possibilidades como cidadão sujeitos e formadores de direitos se desenvolvam.
Constatamos a relevância da definição de prioridades para garantir a eficácia da PSC, fortalecer as instâncias jurídicas no acompanhamento das políticas públicas sociais e protetivas na atuação da defesa e proteção de direitos, efetivação plena do ECA em todas as suas dimensões e potencialidades dentro da sociedade, garantir um sistema de educação pública que favoreça sua cidadania, sua capacitação para o mercado de trabalho, acompanhamento sistemático na aplicação das medidas, capacitação das instituições e de equipe técnica multidisciplinares com o comprometimento de seu resgate junto à comunidade, fiscalização permanente do Estado e da sociedade nas medidas socioeducativas integrados com a família construindo laços sociais positivos de convivência saudável com outras pessoas (agentes educadores) que o habilite a retomar o convívio social.
Defender e divulgar o ECA são ações de suma importância para dar continuidade à luta pela implantação dos direitos desse segmento excluído da sociedade. Resgatar o adolescente em conflito com a lei dentro de suas possibilidades de formação integral, dar novas informações com estudos de qualidades e dignos para sua formação, respeitar a sua cidadania e a pluralidade social em que está inserido cultural e economicamente.
Portanto, apesar do avanço na implantação da PSC é necessária a articulação e integração entre os poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e o Ministério Público, com a implantação dos Núcleos de Atendimento Integral ao Adolescente – NAI, contribuindo para a agilização nos processos e diminuir a sensação de impunidade, capacitação dos profissionais, preparando-os para a realidade vivida pelos adolescentes brasileiros, sem estigmatizá-los ou discriminá-los por sua condição.
A redução da maioridade penal não irá resolver os contextos pré-existentes em nossa sociedade, já que retira o adolescente do seu convívio social e não busca solução para os mesmos. Assim, acreditamos que, por meio da PSC pode-se alcançar o desenvolvimento pleno e saudável, contribuindo para a recuperação e a reinserção do adolescente na sociedade, sendo visto não mais como autor de ato infracional e sim, como cidadão, o que caracteriza a efetivação desta medida.
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