sábado, 7 de maio de 2011





mulheres negras: histórias de resistência, de coragem e de superação e sua difícil trajetória de vida na sociedade brasileira.

“É difícil a trajetória, mas é possível. É possível por que somos mulheres, somos fortes, somos guerreiras, somos lindas.”

(Maria José)[1]

Autor: Adeildo Vila Nova[2] e Edjan Alves dos Santos[3]
Instituição de ensino: Centro Universitário Monte Serrat – UNIMONTE
Orientadora: Profª. Ms. Maria Natália Ornelas Pontes Bueno Guerra[4]

A difícil trajetória de vida das mulheres negras na sociedade brasileira

A questão de gênero sempre foi e ainda será, por muito tempo, objeto de muita discussão e reflexão sobre o papel e a importância da mulher na sociedade brasileira. Dentro desse contexto, ressaltamos a questão racial em nossos questionamentos, focando a questão na mulher negra que sofre uma tripla discriminação. A primeira por ser mulher, pois não é nenhuma novidade em nossa história, que a mulher sofre diariamente pela sua condição de gênero e que, frequentemente, é preterida no mercado de trabalho e quando consegue uma colocação profissional, na maioria das vezes, é em postos menos favorecidos em termos de salubridade e de condições de trabalho. A segunda discriminação é por ser pobre, pois infelizmente e segundo levantamentos realizados por diversas instituições de pesquisas brasileiras, a população pobre está na base da pirâmide social e ocupa os piores postos de trabalho disponibilizados para esta população. A terceira e, particularmente, a mais cruel de todas, por ser negra, pois este é um tipo de preconceito e de discriminação que ultrapassa os limites da sobrevivência em termos de sociabilidade e, muitas vezes, são exercidos de forma velada, camuflada, interferindo de forma determinante na subjetividade e na construção do ser social.
De acordo com os dados da pesquisa: Retrato das desigualdades de gênero e raça, divulgado em setembro de 2008, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), se a cor se soma ao gênero feminino, o quadro se agrava: negras têm menos escolaridade que brancas, vivem situações de trabalho mais precárias e ganham, em média, 383,4 reais - 32% do que recebem os homens brancos -, enquanto o salário das brancas (em média, 742,1 reais) vale 63% dos holerites masculinos. Na casa das negras falta muita coisa: 17% não têm geladeira, 77% ainda lavam a roupa à mão, 67% vivem sem telefone ou celular e 89% jamais tiveram um freezer. O perfil de ocupação desse grupo é pouco diferente da atividade que exercia no tempo da casa-grande e senzala. As mulheres negras estão em massa na maior categoria profissional brasileira: são 80% das mulheres dentre os 6,8 milhões de empregados domésticos. Esta é a única categoria inserida no mercado formal de trabalho que não cumprem os direitos previstos na Constituição Federal de 1988.
Ser mulher negra é uma condição social que põe à prova, todos os limites de uma pessoa: a paciência, a tolerância, a compreensão, pois tem que lidar diariamente com a rejeição, o preconceito e a discriminação da sociedade. Ser mulher, negra e pobre é um cotidiano heróico de resistência que, historicamente, busca superar os obstáculos que a vida lhe impõe. As atividades escravocratas realizadas pelas mulheres negras como empregadas domésticas, cozinheiras, lavadeiras, costureiras e vendedoras de rua, que facilitam sua colocação no mercado de trabalho e lhes proporcionando uma ocupação no período pós-abolição e constituindo-as como grupo responsável pela produção familiar, difere totalmente dos homens negros, que por não possuírem habilidades profissionais foram lançados no mundo como cidadãos livres e lhes atribuídos a classificação de vagabundos e desordeiros e o que, na realidade se concretizava. Era um perverso processo de exclusão social a partir da sua não incorporação no processo produtivo que se modernizava na época.
As mulheres negras foram literal e discriminadamente lançadas aos postos de trabalho considerados como de segunda classe: trabalhos braçais e insalubres. Atualmente, ser mulher e ser negra no Brasil significa ainda estar inserida num ciclo de marginalização e discriminação social. Isso é resultado do nosso processo histórico, que precisa ser analisado afim de buscar soluções equacionadoras para “antigos” e atuais estigmas e dogmas. A abolição da escravatura sem planejamento, e a estrutura da sociedade de base patriarcal, machista e classista, acabou por resultar na situação atual, em que as mulheres negras e/ou afro-descendentes são vítimas dessa tripla discriminação, mesmo que, muitas vezes, não tenham consciência dessa condição.
Devido à extrema pobreza, marca da sociedade brasileira, as meninas negras ingressam muito cedo no mercado de trabalho, na maioria das vezes, em condições de exploração pela sua condição financeira, produzindo em sua identidade, sentimentos de opressão e de humilhação. Para as mulheres negras e/ou afro-descendentes o mercado reserva posições menos qualificadas, os piores salários, a informalidade e o desrespeito.
É preciso lembrar que algumas dessas mulheres, contra todas as adversidades, conseguiram chegar à universidade, alcançaram um lugar de destaque na sociedade, mas as barreiras continuam.
De acordo com a professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina, professora Maria Nilza da Silva:

A mulher negra, portanto, tem que dispor de uma grande energia para superar as dificuldades que se impõem na busca da sua cidadania. Poucas mulheres conseguem ascender socialmente. Contudo, é possível constatar que está ocorrendo um aumento do número de mulheres negras nas universidades nos últimos anos. Talvez a partir desse contexto se possa vislumbrar uma realidade menos opressora para os negros, especialmente para a mulher negra.

Mesmo as que possuem diploma universitário, sofrem as discriminações do mercado. Muitas não conseguem exercer a profissão que se dedicaram na universidade e sem opção exercem as mesmas profissões de outrora.  
Ascender socialmente é algo muito difícil para a mulher negra, são muitos obstáculos a serem superados. O período escravocrata deixou como herança no pensamento popular, que elas só servem para trabalhar como domésticas ou exibindo seus corpos. A melhoria da posição social do negro e, especificamente da mulher negra, é resultado de um esforço gigantesco. Homens e mulheres afro-descendentes têm lutado diariamente para levar dignidade ao povo negro, resgatar a sua identidade e auxiliar na busca da sua ascensão social. Nosso estudo, ao ir ao encontro do cotidiano de mulheres negras, busca aprofundar as formas como elas superam as constantes adversidades, dificuldades e barreiras do contexto socioeconômico e político cultural da sociedade contemporânea para garantir sua mobilidade social.
Este artigo está organizado da seguinte forma: Primeiramente, com este texto de introdução pelo qual pretendemos situar o leitor sobre os assuntos e temáticas que trataremos no decorrer do artigo. Em seguida, justificaremos a importância da pesquisa e indicaremos os objetivos deste trabalho. Posteriormente passaremos a expor a metodologia utilizada, assim o leitor poderá acompanhar o decorrer do processo adotado para a coleta de dados e a forma pela qual estas informações foram sistematizadas para qualificação desta pesquisa. Partindo para a etapa final do trabalho, o desenvolvimento se deu num processo dialético, de discussão, em que a partir dos dados e das informações coletadas, realizamos uma análise qualitativa confrontando estes dados com as fundamentações teóricas e com as nossas percepções em relação ao relatado pelos nossos sujeitos de pesquisa para então apresentar o resultado deste estudo e finalmente, a conclusão. Dessa forma, pudemos avaliar todo o processo e fazer as nossas considerações sobre tudo que ouvimos, sentimos, percebemos para assim contribuir para o debate e reflexão sobre a condição da mulher negra na sociedade brasileira e as implicações que recaem sobre ela na busca da ascensão social, pela questão de gênero associada à questão racial.



Pesquisar para saber, saber para agir, agir para transformar a realidade

O objetivo principal deste estudo é analisar o impacto do acesso à educação e sua importância para o trabalho qualificado na vida das mulheres negras. Além disso, procuramos  identificar as barreiras pelas quais as mulheres negras em ascensão social enfrentam em seu cotidiano, e de que forma essas barreiras se colocam, interferem, dificultam a sua vida em sociedade e como essas barreiras e dificuldades são trabalhadas e/ou superadas.
Avaliamos ainda, a forma como a educação contribui para melhoria da sua qualidade de vida, sua ascensão socioeconômica e político cultural e na conscientização sobre seus direitos de cidadania, além de dar visibilidade à mulher negra, que a sociedade teima em mantê-la em condição de invisibilidade.
Enfim, pretendemos contribuir com a comunidade negra, especificamente com a mulher negra, no tocante à reflexão sobre seu papel na sociedade e sobre a sua condição de gênero e de raça.


A pesquisa qualitativa como instrumento de valorização da realidade vivida e sentida

Realizamos uma pesquisa qualitativa para buscarmos o conhecimento e a compreensão sobre a trajetória dos sujeitos, neste caso, mulheres negras de origem pobre que tiveram ascensão socioeconômica e político-cultural. A metodologia de pesquisa qualitativa possibilita valorizar o conhecimento que os sujeitos possuem sobre a realidade vivida.
A pesquisa qualitativa é importante, pois “dá voz ao sujeito”, reconhecendo-o como o protagonista da pesquisa. Procura revelar o modo de ser e de viver destas mulheres, nos permitindo conhecê-las de uma maneira mais profunda e qualificada ao podermos dialogar com as suas subjetividades e singularidades. A pesquisa qualitativa deu-nos a oportunidade de compartilhar com os sujeitos da nossa pesquisa, com as suas trajetórias e, a partir de então interpretar suas respectivas histórias de superação, resiliência[5], perseverança, entre tantas outras adversidades impostas no seu cotidiano pela sociedade brasileira. Com os depoimentos e narrativas das trajetórias vividas por estas mulheres procuramos, através do estudo científico, conhecer a realidade social no qual estão inseridas, a partir de uma visão crítica da história da sociedade brasileira.

A pesquisa qualitativa, (...) tem por objetivo trazer à tona o que os participantes pensam a respeito do que está sendo pesquisado, não é só a minha visão de pesquisador em relação ao problema, mas é também o que o sujeito tem a me dizer a respeito. (MARTINELLI, 1999, p. 21).

Por meio de fundamentação teórica metodológica, analisamos os fatores que contribuíram e/ou interferiram na trajetória de vida destas mulheres e como decorreu o processo de ascensão a novos patamares na sociedade brasileira. Desenvolvemos pesquisa bibliográfica e nos apropriamos de conhecimento teórico sobre a questão do negro no processo sócio histórico de colonização do Brasil fazendo um recorte de gênero, e assim compreender em que condições sociais a mulher negra se insere no desenvolvimento da sociedade brasileira até a atualidade.
Utilizamos fontes de informações primárias e secundárias através de sites da internet, livros e artigos científicos sobre o tema pesquisado. Para a pesquisa de campo com as sete mulheres negras com perfis diversificados: a maioria delas pertencem a famílias de mais de cinco filhos, algumas delas de origem nordestina ou de famílias oriundas do nordeste. Um dado interessante é que são todas funcionárias públicas concursadas. Elegemos os seguintes critérios para a busca dos sujeitos de pesquisa: mulheres negras, de origem pobre, que tiveram ascensão sócio-econômica e/ou político-cultural e profissionais de nível universitário e pós-graduados, que atuam nas áreas da educação, saúde, legislativo, executivo, judiciário, ou são lideranças políticas, profissionais liberais, entre outros.
Para o processo de entrevista, realizamos um acolhimento inicial com as entrevistadas, esclarecendo sobre os objetivos da pesquisa, sendo orientadas através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, sobre seus objetivos e a garantia de sigilo de sua identificação pessoal.
Utilizamos como instrumental de pesquisa, entrevista semi estruturada, que foi utilizada com o intuito de evidenciar aspectos da trajetória de vida dessas mulheres, suas dificuldades e suas relações sociais, bem como os fatores que contribuíram ou dificultaram no seu processo de desenvolvimento socioeconômico e político-cultural. A pesquisa foi realizada em dias, horários e locais pré-estabelecidos e pré-agendadas com as entrevistadas.
Consideramos que a metodologia da pesquisa qualitativa revela o significado das vivências dessas mulheres, sujeitos envolvidos nessa problemática, expondo suas formas de pensar e avaliar, possibilitando o retorno para elas de forma crítica, posicionando-se em relação ao vivido, ou seja, revelando a experiência social do sujeito.



Histórias de dor e sofrimento, mas também de superação e de muito orgulho

A pesquisa nos revelou um universo marcado por histórias muito bonitas de resistência e instigantes e ao mesmo tempo muito tristes e revoltantes. No cotidiano apresentado por estas mulheres, através das declarações e reações evidenciadas durante o processo de pesquisa, percebemos o quanto há de dor e sofrimento nas falas das entrevistadas na tentativa de viver numa sociedade que ao mesmo tempo em que diz que não discrimina, através dessas mulheres revela o quanto a sociedade discrimina e exclui as pessoas por causa da cor da sua pele.

“É uma auto-estima roubada por séculos: você é ruim, você é negra, você é suja, você é fedida (...)  Um dia uma pessoa me disse: os negros são mais fedidos.” (Maria do Carmo).

De acordo com as entrevistadas, um dos principais fatores que contribuem para a ascensão social da mulher negra na sociedade brasileira é a educação, seja ela formal ou informal. A fala da entrevistada Maria do Carmo nos revela esta condição:

“Eu penso mesmo que a educação formal ou informal é a base dos nossos desvelos, eu tenho possibilidades, eu tenho escolha, eu tenho desejos. A educação como alavanca para uma consciência mais ampliada.”

Para a maioria das entrevistadas, a educação aparece como primordial, como fundamental para o desenvolvimento da mulher negra. Contudo, de acordo com os relatos das entrevistadas, o acesso à educação foi muito difícil. Tiveram que abrir mão de diversas coisas e trabalhar para pagar as mensalidades da sua faculdade. Em um dos casos, os pais ficaram com esta responsabilidade para que sua filha pudesse se dedicar integralmente aos estudos. Mesmo assim, a maioria delas fez isso se utilizando de diversas estratégias para ter o maior aproveitamento possível, pois sabiam que não bastava ser boa naquilo que iam fazer, tinham de ser as melhores, tinham de ser excepcionais, conforme relato da Maria de Fátima:

“Para aprimorar aquilo que aprendia, comecei a trabalhar em congressos, workshops, assim, quando acabava aquela parte de credenciamento, eu podia assistir aos eventos de graça.”

Esse depoimento nos mostra uma das inúmeras estratégias que estas mulheres se utilizavam para que pudesse se superar em relação às demais, pois sabia da necessidade de ser a melhor entre todas, como indica o relado da Maria José:

“A educação é o mais importante, que a mulher negra e o negro em geral tem que buscar, por que sem educação nem negro nem branco vai a lugar nenhum. E principalmente o negro, já que a gente sente que tem este preconceito todo, é procura se qualificar, procurar buscar a educação, buscar o estudo e tentar ser o melhor dentre todos, a gente procurar se sobressair, é só estudando, não tem outro caminho, a gente não tem como aprender sozinho, tem que estudar mesmo, buscar conhecimento, independente da área que você escolha, mas sempre estudando, não tem limites, só estudando você vai conseguir chegar no topo”.

Outra constante nas falas das nossas entrevistadas foi em relação à questão da associação entre os fatores gênero e raça, de como essa combinação é nociva para que qualquer mulher negra possa galgar outras posições sociais, outros conhecimentos, outras vivências. Segundo Maria José:

“Às vezes você tem capacidade, mas por você ser negra e mulher, infelizmente isso exclui e as pessoas deixam de te dar um cargo por conta disso.”

Já a entrevistada Maria de Fátima diz que:

“Eu tenho certeza que, na hora de escolher entre uma ou outra, provavelmente a mulher branca vai ter uma oportunidade a mais do que a mulher negra. Existe ainda a questão do racismo institucional[6] que ele é, em algumas situações, velado e em outras não, e isso atrapalha.”

Estas falas nos revelam o quanto o preconceito e a discriminação racial estão disseminados entre as pessoas e o quanto isso é nefasto para estas mulheres, principalmente quando estas pessoas são profissionais de recursos humanos e ocupam cargos que realizam a seleção de pessoal para as empresas. Estes sentimentos não são colocados de maneira clara, não são expostos de maneira que possamos identificá-los e combatê-los, muito pelo contrário, eles são exercidos de forma velada, camuflada e materializados através da negação do acesso do indivíduo àquela vaga no mercado de trabalho, entre outros casos em que os acessos são deliberadamente negados aos negros em geral e especificamente à mulher negra, em que o padrão branco predomina.
Percebemos assim, que a atitude necessária para enfrentar a dor e o sofrimento, o preconceito e a discriminação é o compromisso com a educação que necessita ser assumido com perseverança, com resistência, frente às adversidades.
Afirma-se aqui, o conhecimento como instrumento fundamental para o empoderamento dos sujeitos para que estes possam (re)construir suas próprias identidades e posicionar-se e exigir a cidadania a que tem direito.

“A educação como alavanca para uma cidadania ampliada... eu possibilidades, eu tenho escolhas... eu tenho desejos... consciente de seu papel.” (Maria do Carmo).
               
E todas aliaram a educação ao apoio familiar, e algumas, de amigos, como elementos fundamentais de acolhimento e força nos seus momentos mais difíceis. Revelando a importância da família e o sentimento de pertencimento e ainda, relações a partir do processo de sociabilidade que corroboram no processo de fortalecimento.

“Meu pai não queria que eu fosse empregada doméstica (como a mãe)... minha mãe trabalhava e eu cuidava dos meus irmãos e da casa... toda nossa história é uma história de lutas.” (Maria de Lourdes).

“De uma família de sete irmãos, fui a única que fiz faculdade. Tive muito apoio da família e dos amigos em várias situações na minha vida. Iniciei no trabalho aos 13 anos de idade como patrulheira.”  (Maria Antonieta).

O tema mais polêmico e com opiniões mais diversas possíveis é com relação às Políticas de Ações Afirmativas[7], especificamente as cotas, que reproduz o que acontece na sociedade de um modo geral. Ao serem perguntadas sobre o que entendem ou o que acham sobre este tema, algumas foram totalmente e outras parcialmente contra. A entrevistada Maria de Lourdes, que é a favor disse o seguinte sobre a importância destas políticas:

“Porque você começa a incomodar, porque acaba a sua invisibilidade... O país tem que fazer Políticas Públicas para este segmento que foi rejeitado, que foi esmagado, que foi retirado dele a condição de humanidade.”

Houve ainda quem fosse totalmente a favor e outras sem opinião formada sobre o assunto. Na verdade é uma discussão relativamente nova aqui no Brasil[8] e que, por isso mesmo, é muito controversa e polêmica, que requer, ainda, muita discussão e reflexão sobre suas verdadeiras contribuições para a promoção dos direitos e o efetivo acesso dos negros e negras deste país, aos postos que foram historicamente reservado à classe dominante e majoritariamente branca.

Como os mais desiguais em convívio direto com os brancos e populações ricas, são lançadas à marginalidade, excluídos do mercado de trabalho sem condições competitivas e bloqueados em suas tentativas de ascensão social e conquista da cidadania. Os governos da União, dos Estados, do distrito Federal e dos Municípios desenvolverão planos ostensivos para conferir às populações negras meios para corrigir essa situação intolerável e, especialmente, para difundir entre si a cidadania ativa. (FERNANDES, 1993).

O depoimento de Maria José revela o que acabamos de refletir:

“Eu acho que é bom. Eu acho que contribui muito para que a gente possa galgar degraus melhores. Como negra, de verdade, isso já me ofendeu um pouco, por que parece uma forma de discriminação. É como se dissesse ao negro que ele não tem a mesma capacidade mental e psicológica do branco, então eu preciso colocar pra você uma cota, que aí, dentro da sua cotinha de negros, você consegue se sobressair, com os brancos você não é capaz de fazer. Até hoje eu não tenho uma opinião formada, de verdade, sobre isso.”

Um fato muito curioso e preocupante apontado por uma das entrevistadas é a questão do assédio moral e assédio sexual contra as mulheres negras. Maria de Fátima nos revela que:

“A mulher negra sofre muito mais assédio moral e assédio sexual do que a mulher branca. A mulher negra, como toda mulher que é objeto, ela também é, acrescido ao fato da cor da pele dela.”

Este dado nos revela a sociedade machista e autoritária em que vivemos, onde é preciso usar das relações de poder, do autoritarismo e da opressão para submeter as pessoas a determinados comportamentos e situações constrangedoras. Esta informação pode ser confirmada pelo estudo da professora Benilda Regina Paiva de Brito, publicado em 05 maio de 2006 que afirma que:

A violência doméstica (cometida em casa pelo pai, filho, e principalmente pelo marido ou companheiro) é uma dura realidade no caso das mulheres negras. Dados preliminares do Benvinda – Centro de Apoio à Mulher da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, demonstram que, naquele município, 62% das mulheres que denunciam situação de violência são negras.

A entrevistada Maria de Fátima ainda complementa:

“Tudo isso traz problemas enormes e conseqüências danosas, até a questão psíquica desta mulher, que está querendo ascender socialmente, chegar a algum lugar, investir na carreira, fica comprometida.”

Quando perguntadas sobre o que contribui para que a mulher negra tenha maiores oportunidades de emprego, inserção social e direitos de cidadania, a maioria das mulheres respondeu que, em primeiro lugar está a educação, formal ou informal, a qualificação profissional, a consciência de sua condição social e os fatores que lhe colocam nesta condição, além da participação em movimentos sociais. De acordo com Maria de Fátima:

“A gente faz isso se associando, buscando participar dos movimentos, das associações de negros, para conhecer, para se apropriar da sua própria história, para a gente não ter vergonha da sua própria história.”

E acrescenta:

“Quanto mais a gente se apropria disso, busca informação, ler, vai atrás, a gente conversa, isso ajuda bastante, você sente o valor que tem.”

Estes depoimentos nos revelam a importância da compreensão do processo sócio histórico da origem, da valorização da cultura negra, da sua identidade. A partir daí, consciente do seu papel na sociedade brasileira, a mulher negra pode se associar aos movimentos negros para ter seus direitos respeitados e seu acesso aos bens e serviços garantidos. Muitos dos direitos da comunidade negra, especificamente aqueles que atingem principalmente a comunidade negra, foram colocados na pauta das discussões das políticas públicas do Brasil, graças a atuação dos movimentos sociais negros que se fizeram presentes nestas discussões, como relatado no depoimento da entrevistada Maria de Fátima:

“Foi o movimento negro que trouxe muita discussão para dentro das políticas públicas que são voltadas para a questão racial.”

E complementa:

“A base de qualquer transformação está lá, na sociedade, na associação, nos movimentos sociais, nos movimentos organizados, nos conselhos, no controle social, nos conselhos de base inclusive.”

Outro dado que chamou a atenção e levanta preocupações foi o fato de que todas as entrevistadas atribuíram uma grande importância ao fato de que a superação das adversidades e dos obstáculos para a ascensão social depende muito da própria mulher negra. Embora todas também admitirem a existência de diversas barreiras estruturais e sociais, que se colocam no seu cotidiano, interferindo, prejudicado e dificultando o seu desenvolvimento socioeconômico e político cultural. Um dos principais fatores, depois da discriminação de gênero e de raça é a questão da auto-estima.
Além disso, há a questão dos esteriótipos, que deixam muitas marcas e traumas na comunidade negra. Há relatos de vítimas de piadas racistas associando o negro ao macaco, ao vagabundo, à faxineira, de que não podem comprar um carro novo e moderno, não tem capacidade de passar em concurso, de usar peruca, de que é mais fedido, e o que é pior, atribuir ao próprio negro a culpa pela sua condição, por ser o primeiro preconceituoso, de ter mania de perseguição, entre tantas outras situações às quais as mulheres negras são submetidas no seu dia a dia.
Há que se pensar em todos os processos de trabalho, na educação, na saúde, na assistência social, como enfrentar essa questão, ou seja, o humano em sua subjetividade e singularidade. É impossível desconsiderar, ou minimizar frente ao exposto neste trabalho, as marcas, os vincos deixados na mulher negra. Esse cuidado humano de fortalecê-las, pressupõem cuidar de sua dignidade, da valorização do seu ser, do seu papel, de sua feminilidade, de sua beleza, de suas diferenças, é romper com estigmas cristalizados no coração.

“A gente sente que tem esse preconceito todo.” (Maria José).

“(...) porque o outro quer é que você seja o diferente, e o diferente para o outro é que você é inferiorizado.” (Maria de Lourdes)

“Deixa marcas indeléveis, da pessoa achar que não tem valor, que não vai conseguir, e aí aquilo vai trazendo, psiquicamente, uma reação que a pessoa se fecha e a possibilidade de tentar superar aquilo é mais difícil (...)”  (Maria de Fátima).

Enfrentar essas trajetórias que representam uma realidade social brasileira que precisa ser rompida nos impõe a pensarmos nos sujeitos envolvidos nesse processo e na concretização de Políticas Públicas que caminhem para a garantia da efetivação de direitos humanos e sociais da mulher negra.


“Coragem, enfrentar sempre e ter no coração aquela doçura de entender que o que ela está fazendo não é pra ela nem pra seus filhos, nem pra aqueles que estão mais próximos.”

(Maria Francisca)



Caminhos e estratégias para a superação das desigualdades de gênero e de raça

“A sua trajetória tem que honrar também o seu antepassado e você tem que trazer isso como modelo para as gerações que virão e que vão dizer: é possível, é difícil, mas é possível. É a sua resistência e a coragem e não a desistência que vai fazer com que a gente chegue lá.”

(Maria de Fátima).

A invisibilidade da questão racial nas estratégias de enfrentamento da pobreza se constitui em um grande paradoxo, pois, apesar das inegáveis desigualdades sociais impostas aos negros e comprovada por diversas pesquisas, a pobreza, o desemprego e a baixa renda dos negros brasileiros foi sempre reduzida a uma questão de classe social, ignorando-a e/ou mistificando-a como uma questão racial.
Ser mulher e ser negra no Brasil significa estar inserida num ciclo de marginalização e discriminação sócio-racial. A melhoria da posição social do negro e especificamente da mulher negra é o resultado de um esforço gigantesco demonstrado através da sua capacidade de resiliência, de enfrentamento e de superação destas desigualdades. As mulheres negras vivenciam no seu cotidiano situações de violência que ultrapassam os limites da dignidade humana. Muitas vezes de forma visível, mas também, envolvidas numa invisibilidade perversa.
A educação é um instrumento de emancipação socioeconômica e político cultural das pessoas, inclusive da comunidade negra e mais especificamente, da mulher negra que é triplamente discriminada: por ser pobre, por ser mulher e por ser negra. Contudo, o acesso à educação, seja ela formal ou informal, é permeado por uma série de dificuldades, principalmente em se tratando de uma população que sempre esteve à margem da sociedade e que, cotidianamente, lida com questões de sobrevivência. Todas estas circunstâncias, faz com que a mulher negra tenha que, diariamente, se sublimar, fazer um esforço enorme para se superar e se afirmar para que possa acessar bens e serviços que estão disponíveis para ela como estão para qualquer outro cidadão ou cidadã. Mas esse acesso não possibilita romper com o que está estabelecido estruturalmente e culturalmente no processo que efetiva a discriminação e a segregação. Os espaços de trabalho são representativos desta condição, pois a elas é muito mais difícil os processos seletivos e a ascensão social na carreira profissional fica comprometida. Além disso, o trabalho se coloca como um espaço contraditório, pois ao mesmo tempo em que ele contribui para a sociabilidade, como um espaço de possibilidades, também reproduz o preconceito e a discriminação, promovendo e, ao mesmo tempo, dificultando as relações sociais e a ascensão social.
Entendemos que a questão de gênero associada à questão racial, coloca a mulher negra em condições extremamente desiguais em relação aos demais cidadãos brasileiros. Diante da realidade apresentada pelos sujeitos de pesquisa, através de suas histórias de vida, de suas trajetórias e das estratégias utilizadas para a superação de todas as adversidades colocadas no seu cotidiano, torna-se urgente a criação de medidas que possam transformar esta realidade, para que estas mulheres não precisem se valer de esforços desumanos para ter a sua cidadania respeitada. As políticas de ações afirmativas se colocam como uma das estratégias para a superação destas desigualdades e disparidades existentes entre o homem e a mulher, entre os negros e brancos. Tratar os desiguais para poder igualá-los é o princípio da equidade e que deve ser buscado incessantemente para que, no futuro, tenhamos uma sociedade mais justa e mais igualitária. Uma sociedade em que a cor da pele não seja motivo para exclusão, para a marginalização, para a opressão dos quem têm mais pelos que nada têm. Onde possamos olhar para o nosso semelhante e dizermos: vamos juntos, homens, mulheres e homossexuais, negros, brancos e indígenas, assim seremos mais fortes e teremos uma sociedade baseada na igualdade e justiça social.

Referências

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Artigo apresentado para concorrer ao Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero - concurso de redações e artigos científicos na área das relações de gênero, mulheres e feminismos - é uma iniciativa da Secretaria de Políticas para as Mulheres/Presidência da República, do Ministério da Ciência e Tecnologia, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, do Ministério da Educação, e do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher.


[1]              Por razões éticas e para preservar a identidade dos sujeitos da pesquisa, os nomes utilizados na construção  deste artigo são todos fictícios.
[2]              Graduando em Serviço Social – 2º semestre do 4º ano e Diretor da Associação Cultural dos Afro-Descendentes da Baixada Santista (AFROSAN).
[3]              Graduanda em serviço Social – 2º semestre do 4º ano.
[4]              Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), professora do curso de Graduação em Serviço Social do Centro Universitário Monte Serrat (UNIMONTE).
[5]           Entre as diversas definições estão a resiliência como traços de personalidade e invulnerabilidade; um conjunto de competências e habilidades individuais, como resultado de traços de personalidade e influências ambientais, a manifestação de competências diante de circunstâncias adversas e o resultado do equilíbrio entre fatores protetores e de risco tanto individuais quanto sociais. (SOUZA, 2006).
[6]              Também chamado de racismo sistêmico ou estrutural, é um conceito criado por ativistas negros para assinalar a forma como o racismo penetra as instituições, resultando na adoção dos interesses, ações e mecanismos de exclusão perpetrados pelos grupos dominantes através de seus modos de funcionamento e da definição de prioridades e metas de realização. (WERNECK, p. 16).
[7]              De acordo com o ministro do Supremo Tribunal Federal Joaquim Barbosa Gomes, Políticas de Ações Afirmativas são “um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional, bem como para corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego
[8]              Embora este tema já tenha sido objeto da Emenda Constitucional elaborada por Florestan Fernandes na época em que era Deputado Federal, em 1993.
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