quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A privatização da cidadania

(*) Adeildo Vila Nova

Introdução

O objetivo deste trabalho é tentar detectar os problemas e ou fenômenos que influenciam ou prejudicam a atividade pública do cidadão brasileiro. Para isto, foram analisados alguns artigos e livros de pensadores, filósofos, sociólogos e psicólogos que tratam da questão dos espaços públicos e dos espaços privados. A intenção desta produção é mostrar como o conceito de público e privado tem sofrido modificações ao longo dos tempos, através do processo sócio-histórico e político-econômico, tanto na esfera teórica quanto na esfera prática e mostrar alguns fatores que contribuíram para estas transformações que levaram ao declínio da vida pública. São apresentados ainda, dois exemplos tanto de organismos públicos como de organismos privados, objetivando a ilustração das considerações aqui apresentadas.

Desenvolvimento

A relação entre o público e o privado, considerando a sociedade contemporânea, difere significativamente da sociedade antiga, especificamente do século VXII e está diretamente relacionado ao surgimento das cidades. A diferença entre o espaço público e o espaço privado na sociedade antiga, diferentemente da sociedade contemporânea, era perfeitamente identificável. O contato com o espaço público não expunha a personalidade e nem a intimidade do cidadão, esta relação era equilibrada. Enquanto uma estava relacionada à vida com os amigos e familiares, com afinidades e identificações que lhes proporcionava esta vida privada, a outra nos remetia à convivência com o outro e suas diferenças. Com o surgimento das cidades, onde as pessoas do campo começaram a migrar para as áreas urbanas em busca de novas oportunidades, fenômeno percebido e acentuado com o advento da revolução industrial que, de acordo com Louis Wirth:

Essa mudança de uma sociedade rural para uma predominantemente urbana que se verificou no espaço de tempo de uma só geração em áreas industrializadas foi acompanhada por alterações profundas e em praticamente todas as fases da vida social. (Wirth apud Velho, 1976, p. 91).

A partir de todas estas transformações das relações sociais estabelecidas neste período, o homem começou a ter contato com estranhos e, automaticamente, com suas diferenças fazendo com que este homem passasse a exercer um papel social atuando de acordo com um código que é aceito por todos e definido por meio desta relação estabelecida. A partir daí, a vida urbana começa a ser enfraquecida, ocasionando o declínio da vida pública que, segundo Sennet:

“... foram mudanças ocasionadas pelo capitalismo no comércio de produtos, com a homogeneização dos produtos através da Revolução Industrial, além de uma produção em massa que transformou significativamente as relações entre o indivíduo que compra e o indivíduo que vende”. (Sennet apud Souza, 2003).

Esta relação de comércio faz parte do processo de formação das cidades que deveriam ser funcionais, permitir aos indivíduos o acesso às mercadorias, conforme Weber:

É normal que a cidade tão logo se apresente com uma estrutura diferente do campo, seja por ser sede de um senhor, ou de um príncipe, e lugar de mercado, ou possua centros econômicos de ambas as espécies – oikos e mercado – e também é freqüente que tenham lugar periodicamente na localidade, além do mercado local regular, feiras de comerciantes em trânsito. Porém a cidade – no sentido que usamos o vocábulo aqui – é um estabelecimento de mercado. (Weber apud Velho, 1976, p. 70).

Neste processo, com uma classe burguesa dominante orientando e dirigindo econômica e politicamente o Estado, surgem as privatizações, processo pelo qual os organismos antes estatais, públicos passam a ser privados, a ter um dono. São as idéias liberais e que culminou no neoliberalismo, com a atuação mínima do Estado. O que era público e, teoricamente, do povo e que o cidadão teria acesso irrestrito passou a ter um proprietário, um dono que estabelece critérios para a utilização dos serviços, o critério financeiro, ou seja, se você pode pagar pelo serviço tem acesso ao mesmo. Os serviços públicos que o Estado tem, por obrigação oferecê-los aos cidadãos, agora passam a ser cobrados pelos seus donos. Serviços sociais básicos como os de saúde, educação, segurança, moradia, esportes, lazer entre outros que deveriam ficar na esfera pública agora tendem, cada vez mais, a serem privatizados.
Destaca-se para análise neste trabalho, os serviços de educação e segurança públicos, especificamente escolas privadas e serviços de segurança privados. Com a ausência do Estado ou sua participação mínima, como indica o pensamento neoliberal, orientação político-econômica vigente no Brasil, é cada vez mais crescente o surgimento de escolas privadas e de empresas de prestação de serviços de segurança privada. Estes serviços não são acessados pela maioria da população brasileira que é pobre, ou seja, o acesso só é efetivado através de uma transação comercial que é estabelecida entre o prestador do serviço, o vendedor do serviço e o consumidor, aquele que compra, que é o brasileiro pertencente a uma classe privilegiada, mais abastada financeiramente. A grande massa da população brasileira fica à margem desta sociedade que pode pagar pelos serviços que deveriam ser, a princípio, disponibilizados aos cidadãos para que o acesso seja irrestrito e universal, onde todos pudessem usufruir dos seus direitos e assim exercer de fato a sua cidadania plena que, pelo quadro apresentado, esta também acaba sendo privatizada, à medida que é preciso pagar para garantir o acesso aos serviços essenciais básicos.
A participação mínima do Estado delega a terceiros uma obrigação que deveria ser exercida pelo mesmo. Quando o Estado deixa de atender às demandas da população abre espaço para que outros agentes atuem neste espaço. Daí o surgimento de alguns fenômenos como a violência, bem como de empresas interessadas na obtenção de lucros e acúmulo de capital que se aproveitam desta situação para suprir estas necessidades ou deficiências do Estado. É neste espaço que entram as empresas privadas que cobram um preço muito alto da população: as diversas formas de desigualdades provocadas por este processo e que tendem a aumentar, cada vez mais.

Conclusão

Percebe-se que as desigualdades no país não estão relacionadas apenas a má distribuição de renda, mas também as dificuldades de acesso da população aos bens e serviços que deveriam ser disponibilizados aos cidadãos. É claro que se uma pessoa não tiver acesso a uma educação de qualidade na sua base de formação e nos anos posteriores, isso se refletirá na sua vida adulta quando for em busca de um emprego. Sem uma boa formação, o máximo que conseguirá será um subemprego. Logo seu salário será baixo e sua qualidade de vida será muito aquém do desejável. Esta situação se prolongará pelas gerações futuras. Da mesma forma acontece com a questão da segurança pública no nosso país. Sem a atuação ou atuação mínima do Estado, outros agentes assumem o comando e começam a surgir os poderes paralelos, que funcionam como uma empresa privada como, por exemplo, as milícias entre outros, que cobram para garantir a segurança e outros serviços que os moradores de determinadas regiões quiserem contratar. Surgem principalmente nos locais onde está concentrada a maior parte da população, nas periferias. Nestes locais a omissão do Estado acentua cada vez mais a distância dos cidadãos residentes nestes locais. Isso leva insegurança, descrédito com os poderes constituídos e não colabora, em nada, com o desenvolvimento das pessoas. Por causa desta situação, as pessoas acabam deixando de fazer as suas atividades, sua vida social fica limitada ao que determina estes poderes paralelos que mandam e desmandam, definem as regras de convivência do local além de expor as pessoas a situações de perigo e constrangimento.
É preciso maiores investimentos na escola e na segurança públicas e em todos os serviços que devem ser disponibilizados pelo Estado, para que a população não precise recorrer aos serviços privados, ou o que é pior, serem vítimas de pessoas desonestas e criminosas, que se utilizam da situação de fragilidade, descaso e ausência de proteção em que se encontram estas pessoas para extorquir e explorar esses cidadãos, que já são tão prejudicados por uma linha político-ideológica que acentua, cada vez mais, as desigualdades entre os povos e que transformam, de maneira cruel, as relações sociais estabelecidas na sociedade, fazendo com que as pessoas, cada vez mais, valorizem o individualismo em detrimento dos valores coletivos. Valores estes tão importantes para a conquista de direitos e de representatividade política e social. Este é um desafio do Estado, mas que deve ter o comprometimento de toda sociedade. É claro que isto não é fácil conseguir realizar esta mudança, não acontece da noite para o dia, mas é preciso ter isto como meta principal, não abandonar jamais esta idéia, este objetivo. Tem que ser uma via de mão dupla. Onde cada um seja responsável por uma parte. O Estado disponibiliza os serviços e cria mecanismos e regras para que o acesso seja irrestrito e universal ao mesmo tempo em que a sociedade se compromete a zelar pelos serviços e equipamentos, fazer o seu controle e definir as prioridades, com a consciência de que o serviço é público, ou seja, do povo, e que por isso deve ser preservado, e não privado, com um proprietário que diz quais as regras que serão definidas para garantia do acesso aos serviços. Desta forma, a sociedade em conjunto, em comunidade, criará meios e mecanismos de garantir que seus direitos sejam respeitados. Assim, a cidadania plena tão sonhada não será apenas uma quimera, um sonho, muito menos um produto de mercado, mas fará parte da sua vida, da sua realidade. O público será de fato do e para o povo. E a sociedade será a primeira a beneficiar-se destas ações que ela mesma definiu como as suas prioridades de atendimento.


Referências bibliográficas

O fenômeno urbano. VELHO, Olávio Guilherme (organizador). 3ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976, 133.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público. : as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 15-45, p. 381-415.

Bibliografia

ARAÚJO, Ângela Lúcia de. Privado e público: inovação espacial ou social?, Disponivel em: . Acesso em: 30 Mai. 2008.
DUPAS, Gilberto. Tensões contemporâneas entre público e privado, Disponivel em: . Acesso em: 30 Mai. 2008.
SOUSA, Emanuel Silva de. Resenha , Sennett, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução: Lygia Araújo Watanabe — São Paulo; Companhia das Letras, 1988. Disponivel em: . Acesso em: 5 Jun. 2008.
SOUZA, Mériti de. Leituras sobre o público, o privado e o sujeito da ação configurado pela identidade individualizada, Disponivel em: . Acesso em: 30 Mai. 2008.

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